[teatro] Abstenção

Teatro O Bando

De Abel Neves. Encenação, cenografia, dramaturgia e dramatografia: João Brites. Música e direcção musical: Jorge Salgueiro. Desenho de luz: Rita Louzeiro. Corporalidade: Vânia Rovisco. Figurinos e adereços: Clara Bento. Oralidade: Teresa Lima, Sara de Castro. Apoio à dramaturgia: Miguel Jesus. Apoio à cenografia Rui Francisco e Fátima Santos. Interpretação: Guilherme Noronha, João Neca, Juliana Pinto, Raúl Atalaia, Rita Brito, Sara Castro. Produção: O Bando

A um canto, num tabuleiro, joga-se, talvez, o futuro, que bem pode ser a morte. No outro, que não é bem um canto mas uma espécie de labirinto ou cercado concêntrico, encontra-se a Besta, o pai bruto e ditatorial, mais a sua família de aldeões subjugados pela violência, a resignação, o consentimento, a superstição. Todos sofrendo de uma abstenção de agir, de mudar, de transformar, de evoluir. No fim, estará tudo em cacos.

Batido mais um recorde de abstenção eleitoral é provável que o título da nova peça de O Bando seja interpretado demasiado literalmente. Esta Abstenção – criada por João Brites a partir de Cruzeiro, de Abel Neves (n. 1956) –, embora também tenha a ver com a do costume, é mais profunda que a simplicidade de não votar, seja por princípio, ou por desinteresse, ou por ignorância singela; mais radical na sua confrontação entre a indiferença e a ética, seja na família, seja no país, seja na Europa, seja nesta aldeia em alhures simbolicamente ordenada por uma floresta de tubos que o cenário (e a música de Jorge Salgueiro) torna metaforicamente eficaz na caracterização de um ambiente tiranicamente opressivo, doentio, silenciado pelo medo; o mesmo temor que também tolhe o espírito e cala a raiva, mas por onde, no entanto, ronda a inquietação, o desejo de partir, melhor, de fugir para contrariar a tragédia do destino.

O talento, a experiência e a enorme figura de Raul Atalaia criam um patriarca verdadeiramente aterrorizador na sua boçalidade primitiva, mantendo na rédea curta da posse os atemorizados filhos (Guilherme Noronha e João Neca), a silenciosa mulher (Sara de Castro) e a desassossegada namorada (Juliana Pinho) de um dos rapazes, que ele próprio emprenhou numa demonstração de força e poder; no processo desafiando, tanto quanto temendo, a personagem enigmática e fúnebre, e fundamental para o simbolismo da obra, interpretada por Rita Brito, perante a qual, não vá a metáfora deixar a dúvida pairar e ser preciso fazer um desenho, as personagens depositam as bandeiras da Alemanha e da França e da Espanha e de Portugal. Isto é: os símbolos do dominador e do colaboracionista frente a frente com os dos subjugados, dos incapazes de rebeldia, dos conformados, ou seja, dos abstencionistas da acção, dos impróprios para o gesto libertador que o desejo anseia mas o atavismo nega, aos poucos, por mor da sua falta de coragem em enfrentar e depor o tirano – ou por mor de não saberem o que fazer depois –, abandonando a sua humanidade, por muito que procurem lavar-se desse mal, livrar-se da peçonha e do seu evidente, se não mesmo inevitável, recuo civilizacional.

(in Time Out 421, 21. 10. 2015)

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